Espiritualidades no timing da vida. Abril: Laura e mártires pela cidadania.
Jaci Rocha Gonçalves*
Car@ leitor@, o nome dela é Laura, do latim aurum = ouro, metal precioso. É mãe, vó
e bisavó. Sua espiritualidade produz cidadania. Gira pela vizinhança todos os
dias, há muitos anos, como cuidadora voluntária: faz serviços indispensáveis
como dar banho nos acamados, chá de ervas, provê lar para pessoas com
deficiência severa como os que encaminhou à Orionópolis Catarinense nos inícios
da década de 1990.
Há cerca de vinte anos, Laura é Ministra da Eucaristia na
Igreja Católica, voluntária que leva Jesus Cristo na forma de palavra amiga e
de hóstia consagrada aos enfermos de sua comunidade. Outro dia me avisou que o papa Francisco
respondeu sua cartinha. No final de uma missa de domingo cantamos os parabéns pelos
seus 79 anos. Um detalhe: disseram que ela se aposentara como Ministra da
Eucaristia.
Mas parece que ela não ouviu direito e continua como Madre
Tereza da vizinhança, acreditando que seu nome de batismo é como um mapa para seu
viver: ver nas pessoas a “Laurice” de cada uma, quero dizer, sua dignidade de
ouro vivo, de pérola preciosa do divino no humano. Laura talvez não saiba, mas sua
presença é uma ameaça real contra cidadãos corruptos no trato das pessoas desde
funcionári@s públicos de sua comunidade próxima (sejam juízes, parlamentares,
executivos) até aos que manipulam consciências nos serviços de mídia, também
concedidos temporariamente pelo povo.
Não vejo contradição em listar a bisa Laura com mártires e
indignados éticos de abril. Em 1792, Tiradentes, seus amigos e sua filha
Joaquina atualizam no Brasil os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade
da Revolução Francesa; os da Revolução dos Cravos de abril de 1975 que
liberaram os países africanos do jugo português ou São Sepé Tiaraju, jovem
líder guarani dos Sete Povos das Missões, martirizado em 1756.
O abril indígena precisa ouvir os gemidos de milhões de
mártires assassinados desde a gestão do Governador Geral Mem de Sá quando expôs
numa praia fluminense quilômetros de cadáveres do povo Tamoyo como forma
pedagógica de dominação ou os martírios da gestão catarinense quando pagava aos
bugreiros pelas orelhas dos indígenas assassinados até os 8 mil indígenas pela
gestão da ditadura militar conforme a Comissão Nacional da Verdade.
Mas a esperança não decepciona e os jovens descendentes de
São Sepé sopram as brasas sob as cinzas dos tempos nas aldeias guarani de
Palhoça, do litoral catarinense e com outros povos originários em inúmeros
cantos do Brasil. Vizinhas de Laura e com a mesma determinação ética de
Laura, as mães guarani mantém acesa a
chama da dignidade em seus filhos e dão o tom de sua cidadania Homo Serviens na
aldeia Itaty ao inaugurar neste abril o Centro Cultural Tataendy Rupá,
homenagem ao sábio Xeramõi Adão Karaí Tataendy Antunes cujo enterro descrevi numa
de nossas crônicas, lembra-se?
As Lauras, os Tataendy Rupa, os guarani organizados resistem
a um mundo corrupto não apenas na manifestação de ruas, indo ao Congresso
Nacional, à Assembléia Legislativa mas produzindo cidadania ativa em si mesmos
e nos espaços do cotidiano: casa, escola, posto de saúde, igreja, trabalho e
festa. Desconfiam de messias salvadores da pátria e insistem repetir em si o
jeito de ser Homo Serviens como Jesus
naquele abril distante quando decidiu se deixar moer com o trigo da hóstia
partilhada pela Laura à sua vizinhança.
*Padre Casado,
Doutor em Teologia, Filósofo,
estudou comunicação
no Vaticano e é professor da Unisul.
Texto publicado
originalmente em
Jornal Cotidiano, Edição 20, Abril de 2016.
Comentários
Postar um comentário