Espiritualidades no timing do cotidiano

Águas de março, teimosias de abril

                                                                                                             Jaci Rocha Gonçalves*

Car@ leitor/@. É 25 de março de 2017. Sábado. Escrevo diante do mar e do morro sagrado dos guarani, em Palhoça. Ouço Tom Jobim na voz de Elis Regina e de sua filha Maria Rita: “São as águas de março fechando o verão. É a promessa de vida no meu coração.” As águas de março são famosas porque regam as plantações e, ao mesmo tempo,  aprontam cheias incontroláveis. São águas brabas antigas como o apelido do Rio Lavatudo, no Planalto Serrano Catarinense. Elas voltaram, as águas brabas, fechando o verão. É bem assim, às vezes, no mar de nossa natureza humana.

Anunciação do Senhor. Solenidade.
Talvez, por isso, seja oportuno aprendermos a leitura desses fenômenos com as chaves da sabedoria popular. O povo liga estrategicamente a Festa da Anunciação de 25 de março, em que Jesus é fecundado, com o Natal em 25 de dezembro, nove meses depois. Por coincidência, meus alunos da Unisul comentaram que valeu nesse março barriga verde a Festa da Anunciação inspirando o musical 2017 que une as vozes nordestinas de Alceu Valença e Elba Ramalho: “A voz do Anjo sussurrou no meu ouvido, e eu não duvido já escuto os teus sinais, que tu virias numa manhã de domingo, eu te anuncio nos sinos das catedrais! Tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais.”


Assim, Anunciação é a festa do cuidado com a vida, da gravidez de Jesus no útero jovem de Myriam, Maria de Nazaré. Hoje ela é chamada de Nossa Senhora de todos os nomes e cores, em todas as falas e danças, em variados cantos e ritmos. Provavelmente porque, na gravidez de Maria, Myriam, mãe de Jesus se celebram todos os símbolos e tempos em que o feminino garante o cuidado com as vidas. E o masculino também, como José, cuidador inseparável de Myriam e Ieshuá (Jesus).

Deixar-nos tomar por esse espírito da Festa da Anunciação, espiritualidade de cuidadores da vida de todos e de tudo, significa investimento, no mínimo, em nossa saúde fontal, na saúde de nosso ser. Porque essa vibe do cuidado com a vida mexe com o mais profundo de nosso ethos, quero dizer, nosso modo-de-ser-humano. Alguns autores dizem que é o divino fluindo em nosso modo-humano-de-ser. Até não teistas concordam que a opção pelo cuidado biocrático nas relações do cotidiano é nosso modo-de-ser essencial. Eles dizem que não temos cuidado, mas que somos cuidado.

Daí , o pacote de espiritualidade popular unindo março e abril pode de um lado,  sacudir nas posturas de alienação, de deixar como está prá ver como é que fica; ou no desalento causado pela sensação de impotência de achar, por exemplo, que politicamente não temos mais conserto. De outro lado, pode aprumar nossa postura resiliente, teimosa, fortalecida pela páscoa de Jesus unida a outras memórias de lutadores teimosos de abril: de Tiradentes, a Chico Mendes, Irmã Dorothy e uma imensa fileira de mártires indígenas anônimos.


           Tiradentes                                                           Chico Mendes                                      Irmã Dorothy      
(1746-1792)                                                           (1944-1988)                                          (1931-2005)

Todos repórteres teimosos dos valores da dignidade humana e da relação filial com a mãe natureza.
Anunciadores de que é possível e necessária nossa santa teimosia na construção de comunidades livres, responsáveis, participativas e justas, sem deixar de lado o bom humor.

Na vibe do nome Maria, Miryam, que nas sabedorias das espiritualidades antigas significa “aquela que se equilibra sobre as águas, mesmo que águas sejam ondas agitadas”.  



Vamu que vamu, amig@s.


*Padre Casado, Doutor em Teologia e Culturas, Filósofo
Professor da Unisul e Coordenador do Programa Unisul/Revitalizando Culturas

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