Semeadura



Semeadura
Aportes filosóficos sobre a direção de Cleuza Soares
Jaci Rocha Gonçalves, Dr*
Em tempo de África do Sul ainda sob os olhos do mundo, acho oportuno lembrar de Semeadura. Trata da questão das quotas para cidadãos de escolas públicas, negros e índios. É o documentário conclusivo de Cleuza Soares no Curso de Cinema e Audiovisual da Unisul, Pedra Branca em Palhoça/SC e selecionado para o Festival de Cinema da Cufa no Rio de Janeiro. Soares é graduada em filosofia, mestranda em Teoria Literária pela UFSC e mulher negra.  Repasso aqui algumas observações que fiz no debate sobre Semeadura tanto na UNISUL quanto na UFSC.

Antes de tudo, observa-se uma coerência entre a fundamentação - inspirada em Martin Buber, Maurice Merleau-Ponty, Paul Ricoeur  e caberia muito bem Emanuel Lévinas, em que a diretora elege a relação dialógica, de respeito à subjetividade dos entrevistados/atores e de sua equipe e a práxis apresentada na obra estética Semeadura. Pode-se reconhecer esta coerência (1) no frisson e naturalidade dos atores/atrizes já que são pessoas não habituadas ao set e à tecnologia que ainda se impõe com as roupagens do Mito do Meio, para lembrar o velho MacLuhan. Ao mesmo tempo, (2) a coerência se apresenta na finesse, da sintonia fina da equipe de produção – Allan César, Luís Lima, André, Fahya Kury e Mara Salla, observável nas imagens de primeiríssimo plano, valorizando os detalhes e nuances dos sujeitos.

Outro aspecto é a coragem ética de Cleuza Soares quando opta conscientemente pela Negação da Negação da subjetividade de seu povo negro. Aqui a diretora nos aproxima de interlocutores como  Enrique Dussel enquanto filósofo da libertação e do inesquecível antropólogo Darcy Ribeiro. Ambos e,  Darcy no recentíssimo trabalho da cineasta Isa Grispum sobre uma das obras do antropólogo Povo Brasileiro quando diz, como em testamento, no último dos 10 vídeos sob o título A Invenção do Brasil: “é preciso negar a negação”. E vale salientar que a diretora de Semeadura tem uma identidade duplamente negada como cineasta e filósofa mulher e mulher negra, bem como, aquela que reside no anti-lugar que é o Morro.

Esta coragem ética se aprofunda quando o assunto é política não apenas de negação mas de afirmações. Ela opta pela difícil escolha de fazer este documentário Semeadura como um exercício de democracia com a visão de Mário Quintana, ou seja, “dar a todos o mesmo ponto de partida”. Esta opção de Cleuza feita logo em sua primeira obra, mostra a que ethos, quero dizer com Aristóteles à brasileira,  a que jeito-de-ser  pessoa, cineasta e profissional ela veio. Fica claro em sua obra quais serão os focos de sua lente, em que locus  vai levar seus sets  e quais temas serão privilegiados em seu portfólio.

No cultivo deste ethos a cineasta negra segue a trilha de outras mulheres como Tetê Morais de Terra para Rose e de Isa Grispum já lembrada acima. Mas também de outros homens lembrados em seu roteiro de trabalho como Joel Zito de Negação do Brasil e Eu sou neguinho, aquele que soube afirmar na hora kairológica “neste momento histórico só me interessa afirmar o que fui pressionado a negar!”.

Por estes aportes, deixo duas conclusões e uma sugestão. (1) Seu documentário Semeadura não se destine às prateleiras – ele chegue aonde o povo está, como canta o poeta negro Milton Nascimento, de sua saudosa terra natal, as Minas Gerais. (2) Jamais vou esquecer o momento de Semeadura em que a filósofa Sônia Felipe é transformada em atriz. Inicialmente Sônia mostra seu jeito cartesiano de análise com idéias claras e distintas; depois, vai aos poucos se emocionando até o momento ápice do documentário quando tem um “nó na garganta”. É a este framer  quando a filósofa/atriz passa da lógica da razão para as razões do coração que você une mais uma vez sua sutileza com a precisão de cineasta escolhendo-o como desfecho estético de Semeadura. (3) No entanto, para seguir abraçando as ancestralidades africanas, sugiro que ao documentário você dê o direito de usufruir melhor da dança, como nascituro em placenta de mãe.

Assim, Cleuza Soares, a filósofa negra, estaria de bem com o silogismo estético da Mama África proposto pelo filósofo africano Eboussi Boulaga em sua obra La crisi Du Muntu. Boulaga propõe que o pensar e o sentir sejam tidos como importantes  desde que não esqueçam do dançar, como ensinavam os ancestrais. E parafraseia Déscartes e Blaise Pascal: Je dance, donc, je vis! Danço, então, vivo! Assim, sugiro que Semeadura possa ficar imersa na estética vital do dançar.


[*] É professor de Ética na Comunicação e Antropologia Cultural.
É Coordenador do Programa e Núcleo de
Pesquisas Revitalizando Culturas
Na Unisul/ Universidade do Sul de SC.
Texto apresentado no debate da UFSC e UNISUL.

Comentários

Postagens mais visitadas