Pedra Branca e a Espiritualidade da Montanha IV
Artigo publicado no Jornal Cotidiano Pedra Branca
O xamã guarani enterrado na outra montanha
Espiritualidade da
Montanha (IV)
Peço licença ao
velho repórter morador da Cidade Universitária
Pedra Branca para pautar o que vivi na Montanha dos Ancestrais guarani,
o conhecido Morro dos Cavalos. Foi na sexta-feira, 7 de agosto de 2015, bem
cedinho. A pedagoga, diretora da Escola indígena Itaty, também moradora da
Pedra Branca, com surpresa e muito pesar, me avisa que o seu Adão Karaí
Tataendy Antunes falecera por volta das três da madrugada na aldeia.
Apesar da jovem
idade de 58 anos, o professor Adão era considerado um sábio, um xamã. A última
vez que pude vê-lo foi na UTI, já desenganado na luta contra um carcinoma que
lhe havia tomado 70% da hipófise e deixado cego nos últimos dois anos após
longa via-sacra para viabilizar a cirurgia.
Eram altas horas,
mas a plantonista me permitiu rezar na UTI. Cantarolei várias vezes um mantra
em guarani. A força espiritual e solidária de seu povo o trouxe de volta para
viver seus últimos dias na aldeia - na casa que se tornou Centro de Encontros
locais e nacionais na terra devolvida em agosto de 2014. Ali resolveu morar.
Diante do perigo de possíveis agressões, ele dizia: “deixem-me viver aqui,
porque tenho pouco a perder já que estou doente e cego; mas tenho muito a
defender para o bem de nosso povo”.
O corpo do
professor, autor do famoso Palavras do
Xeramõi (velho sábio), e muitas vezes cacique guarani, foi
levado para a OPY (Casa de reza) a um quarto da distância pela picada que leva
ao topo do Morro dos Ancestrais (Morro dos Cavalos). Dessa vez, desobedeci ao
médico e subi sozinho a montanha na noite, degrau por degrau, e lá fiquei
rezando até a madrugada.
Toda vigília e
funeral sempre emociona, e tive a graça de ritualizar milhares. Mas confesso
que em 40 anos de padre e 25 com esse povo, nunca vivenciei um rito tão longo e
com sentidos tão profundos para cada detalhe. Semelhante a este, só nos
funerais cristãos da Ilha do Sal, em Cabo Verde, na África.
Ao meu lado, o
cantador jovem me explicou que não se cansavam ao tocar e cantar por tanto
tempo porque “a gente sente Nhanderu (Deus) gostando de nos ouvir e não vemos o
tempo passar!”. O rito final foi sábado pela manhã, concluído às 14h com o
velho xamã acolhido no ventre da mãe terra na Montanha dos Ancestrais.
No Facebook de sua filha cacique escrevi:
“Amigo, você deixa saudades boas em toda a Unisul e região. Memória de sábio
multicultural. Verdadeiro mbyá! Volta pro colo de Nhanderu Tupã e Nhandercy!
Você continua entre nós como palavra viva de serena firmeza, nascida do
silêncio da fumaça do Petynguá. Dança com os xeramõi, os xondario e xondaria na
Yvy Marae-y (Terra Sem Males).
Foi enfeitado por
folhas de bananeiras, flores silvestres, onde será plantada uma Jussara,
palmeira que garante a memória dos ancestrais como a que ele plantou nos
jardins da Unisul Pedra Branca com nosso diretor em homenagem a outro amigo,
grande antropólogo. Obrigado, Nhanderu (Deus), pela graça de conviver com Adão
Karaí Tataendy Antunes.
LEGENDA: Professor Adão com o Diretor de Campus da Unisul, platando uma palmeira de nome Jussara..
Jaci Rocha Gonçalves é Padre, Doutor em Teologia, Filósofo, estudou comunicação no Vaticano e é professor da Unisul.
Jaci Rocha Gonçalves é Padre, Doutor em Teologia, Filósofo, estudou comunicação no Vaticano e é professor da Unisul.
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