Respeito e igualdade: O Manifesto das Mulheres Guarani

 
Mais de 300 mulheres Guarani reunidas entre 5 a 8 de março na Tekoa Jataí Ty em Conquista, Balneário Barra do Sul (SC)/ Foto: Kunhangue Yvyrupa

Pés de saracura pintados com graça e precisão nas maçãs do rosto. Ao som dos instrumentos sagrados e as certezas repetidas em seus pora'ei (mantras), mais de 300 mulheres Guarani participaram do 1° Encontro de Mulheres Indígenas Guarani Yvyrupa na Aldeia  Tekoa Jataí Ty, na cidade Balneário da Barra do Sul,  no Litoral Norte do Estado de Santa Catarina.

Do dia 05 a 08 de março, as gerações femininas do povo Guarani reuniram-se para a celebração do Dia Internacional da Mulher. Com o tema: Nosso Território é Nossa Mãe, o evento contou com palestras, rezos, apresentações culturais e musicais. Vindas de delegações dos estados do Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, elas trouxeram em suas bagagens as memórias, as vivências, a cultura, a ancestralidade, sementes crioulas e ervas medicinais para a inauguração da Casa de Reza na aldeia.

O evento foi realizado pela Comissão Guarani Yvyrupa, organização que reúne os povos Guarani da região Sul e Sudeste do país.  O encontro teve como objetivo o debate sobre a importância do empoderamento das mulheres e a luta para combater a violência de seus corpos, mente e espírito, e a da reflexão do papel da mulher indígena dentro das aldeias, na sociedade e na política. 

Em entrevista para o Jornal do Almoço a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Kerexu Yxapyry, explica a importância do encontro para as mulheres Guarani.  “O chamado que a gente fez desde o ínicio para que todas as mulheres se mobilizassem de todos os estados e chegassem até aqui, é para dar esse empoderamento a elas. É dizer a elas, que elas são as guardiãs das sementes, as guardiãs da língua, as guardiãs da cultura da espiritualidade.  Sem isso, a gente não consegue ser um povo que tem uma cultura, uma tradição.” Explica Kerexu.

Eunice Antunes, organizadora nacional do evento (Foto: )


O encontro alcançou o objetivo de promover as discussões e soluções referentes às desigualdades de gênero dentro da organização indígena e resgatar o espaço das mulheres nas lideranças das aldeias. O Manifesto final das Mulheres Guarani foi entregue a sociedade indígena e não-indígena no dia 08 de março em que se faz memória histórica da luta internacional das mulheres pelos seus direitos.

O Manifesto insiste no respeito, igualdade, direito das mulheres e na luta constante contra à violência. É um libelo determinado para reescrever 520 anos de uma invasão impiedosa e que voltou com fúria sobre o povo Guarani e cerca de 305 outros povos originários teimosamente remanescentes no Brasil. Guardiãs da cultura, da língua, das sementes e da espiritualidade, o manifesto mais parece uma rebeldia na forma de obra de arte.


Leia o Manifesto das Mulheres Guarani Yvyrupa

1º Encontro das Mulheres Guarani Yvyrupa e Dia Internacional de Luta pelos Direitos das Mulheres/ Imagem: Kunhangue Yvyrupa

Nós, Mulheres do Povo Guarani – Guarani Mbya, Tupi Guarani, Ava Guarani, Guarani Nhandeva, Kaiowa Guarani, estivemos reunidas, juntas em mais de 300 mulheres que representam nosso Povo, entre os dias 05 e 08 de março de 2020, no Tekoa Jatai´ty, em Conquista, estado de Santa Catarina, para o I Encontro Nacional de Mulheres Guarani, realizado pela Comissão Guarani Yvyrupa, organização indígena que reúne coletivos do povo Guarani das regiões sul e sudeste do Brasil.
Neste encontro, discutimos intensamente temas que afetam as nossas vidas e a vida de nosso povo, já que somos nós as responsáveis pela vida junto ao povo guarani. Somos nós que guardamos as sementes, que trazemos as crianças ao mundo e que levantamos nosso povo na luta pela terra.
Preocupadas com o nosso futuro e com a garantia dos nossos direitos, para que possamos viver de acordo com o nosso nhandereko, fizemos uma forte reflexão com as nossas Xejaryi - as mulheres mais velhas de nosso povo - sobre o nosso modo de ser mulher, o kunhangue reko. Sabemos que o nosso modo de vida tradicional foi violado com a chegada do não indígena, e ouvir as nossas anciãs, nos fortalece na luta por uma vida digna e sem violência, e principalmente, de acordo com o que nós, povo guarani, entendemos ser importante.
Isso nos levou a refletir sobre os nossos direitos e deveres: o que nós, mulheres, mães, filhas, lideranças, professoras, agentes de saúde, guerreiras da terra, parteiras, guardiães das sementes devemos fazer para garantir um bom futuro ao nosso povo? Entendemos que precisamos cada vez mais cuidar dos nossos parentes, pois vivemos num mundo compartilhado com os jurua, o não indígena, que nos violentou desde sua chegada, condenando nosso modo de vida e nos impregnando com suas práticas de violências, que atingem a nós mulheres diretamente. O povo guarani sempre foi considerado um povo pacífico, e, se hoje vivenciamos situações de violências extremas, sabemos que elas são resultado do processo histórico de destruição de nossas condições de existência, perpetuado contra nós pelo povo não indígena e seus governantes.
Os jurua invadiram nosso território e nos expulsaram de nossas próprias terras, nos colocando em posição de reféns do estado brasileiro, dependentes de seus alimentos, de suas tecnologias e principalmente, de suas relações de gênero. Hoje, no vemos em uma situação de vulnerabilidade, marcada pela privação de nossas terras, o que produz muita tensão no interior de nossas comunidades. Por isso, as discussões referentes às desigualdades de gênero, quando acontecem dentro de uma organização indígena, não podem contar com os mesmos pressupostos de sociedades não indígenas, o que não significa que este não seja um problema a ser enfrentado também por nós, mulheres guarani.
Partindo desta urgência, tivemos nosso primeiro dia de Nhemboaty todo dedicado a uma intensa discussão sobre as diferentes formas de violência que nos atingem, começando pela falta de nossas terras tradicionais e a consequente ausência de políticas públicas essenciais, como os serviços básicos de saúde e educação. Estas faltas nos vitimizam duplamente: como indígenas e como mulheres do povo guarani. Sabemos por nossas ancestrais que a chegada do jurua em nossas terras nunca foi em paz, que chegaram cobiçando nossas terras e nós mesmas, mulheres indígenas. Desde a carta que marca a invasão do nosso território, chamada erroneamente de “carta do descobrimento do Brasil”, fomos tratadas como objetos hipersexualizados e tidas como alvo potencial de violências no intuito de desorganizar as nossas vidas. Durante muito tempo, não tivemos espaço para falar contra tais violências, mas agora exigimos ser ouvidas: não aceitamos ter nossas vidas e nossos corpos objetificados pela cultura do jurua, muito menos exotizados, como se nosso modo de vida, de cuidados, de fazer e de ser fossem equivocados ou ruins. O jeito como vive o jurua, com a ganância capitalista, colocando o dinheiro na frente do próprio ser humano, tratando nossa terra e suas mulheres como mercadoria, não nos interessa. Inclusive, sabemos que a raiz de muitas das formas de violência que nós, mulheres indígenas, enfrentamos está em coisas, palavras, espaços e instituições que os jurua impuseram às nossas vidas – o consumo abusivo de bebida alcóolica é uma das piores delas.
Entendemos que as leis que os jurua criaram para dar proteção às mulheres são muito importantes e as respeitamos muito. Sabemos que a lei Maria da Penha é o dispositivo que o estado brasileiro utiliza para combater a violência doméstica, e honramos Maria da Penha pela luta pelo direito das mulheres, assim como honramos as mulheres que lutam contra o machismo. Queremos, cada vez mais, entender sobre nossos direitos e decidir sobre a melhor maneira de praticá-los. Ao mesmo tempo, queremos fortalecer nossos próprios modos e dispositivos de resolução de nossos conflitos. Esse nosso conhecimento, sobre como cuidar das pessoas e das nossas relações, dificilmente é respeitado e levado em consideração, e é também por essa valorização que lutamos. Sabemos de nosso direito de acesso à justiça e exigimos que ele seja cumprido, mas não acreditamos que o sistema de justiça dos jurua possa, sozinho, ser a solução para os nossos problemas. Precisamos de mais instrumentos nessa luta, precisamos fortalecer nossas falas, abrir espaço para que elas gerem atitudes de respeito às mulheres, aos nossos corpos e aos nossos conhecimentos. Também não acreditamos que o encarceramento em massa seja a melhor forma de lidar com as situações de violência doméstica, pois, quando um parente nosso é encarcerado, seu processo de ressocialização na vida comunitária é impossibilitado pelas marcas do tempo passado no sistema carcerário brasileiro, que não é bom para os não indígenas, muito menos para os Guarani.
Apesar de reconhecermos a importância da lei Maria da Penha, sabemos também que, em nossas aldeias, ela costuma ser ineficaz. Isso é percebido quando temos nossas vidas ameaçadas pelos homens e tentamos recorrer a essa legislação: mesmo com medidas protetivas sendo aplicadas, a ausência de uma segurança pública dialogada com nosso povo impossibilita que fiquemos verdadeiramente seguras diante dos homens violadores. Assim, os órgãos que recebem nossas denúncias mostram ser inefetivos na resolução destes conflitos e uma história já conhecida se repete, pois nossos direitos indígenas são, como um todo, constantemente violados. Nós não fomos ouvidas para pensar a lei Maria da Penha, para que ela se adequasse a nós assim como tenta se adequar às mulheres não indígenas, para que pudéssemos nos ver contempladas na lei, e isto nos coloca, mais uma vez, na posição de vítimas do sistema de justiça dos jurua. Nosso nhandereko, nosso modo de nos organizar, nosso modo de ser mulher e de buscar o bem-viver não foram levados em conta na produção da lei. Nossas dificuldades não foram consideradas. Como esperam que nós mulheres vivamos bem sem que o direito à nossa terra seja garantido? Sob tantas ameaças, como poderemos nos sentir seguras? A cada vez que é invizibilizado este lado da violência contra as mulheres guarani, o racismo presente na política jurua nos agride.
Se falamos sobre a falta de presença da mulher indígena na legislação jurua, não podemos deixar de manifestar aqui o nosso repúdio à legislação anti-indígena que tem sido criada pelo governo ruralista de Jair Bolsonaro e pelo poder legislativo extremamente violento e racista que o apoia, militarizando os órgãos indigenistas como a FUNAI e precarizando o serviço que é oferecido a nós, povos indígenas. Violando a Constituição e nossos direitos originários, o estado brasileiro tem agido para exterminar nosso povo e nossa terra, anunciando o seu apoio explícito ao agronegócio que envenena nossas terras e nossos corpos. Contra esse tipo de violência, resistimos há séculos e continuaremos resistindo. Nós que sempre cuidamos da Yvyrupa, não compactuamos com este governo de destruição e contrário a diversidade de nossas vidas.
Toda a violência que sofremos se organiza entorno da não demarcação de nossas terras, e é por isto que nos levantamos aqui, junto com as mulheres guarani de todo o Brasil, para gritar ao mundo que nos ouçam, que nos apoiem e nos fortaleçam, e principalmente, que venham junto conosco na luta pela demarcação de nossas terras. Também enfrentamos o desafio de ter que conviver com a escola, dentro de nossas comunidades, que não está respeitando a legislação referente a educação escolar indígena que nos garante uma educação verdadeiramente diferenciada, bilingue, intercultural e comunitária. São muitas as imposições de gestores não indígenas, que estão ferindo e desiquilibrando a transmissão tradicional dos saberes e fazeres de nossa cultura. Também a gestão da Sesai, que às vezes incentiva as mulheres a fazer parto no hospital e a fazer uso de medicamentos químicos, que ao invés de curar, está criando mais doenças. Nós, mulheres indígenas, sabemos qual o melhor caminho para nossas crianças, e nossa voz precisa ser escutada. Também repudiamos a entrada de evangélicos em alguns tekoa, pois até hoje eles querem impor a Bíblia como uma única verdade. Para nós, Opy’i, é a verdadeira Escola, e todos os conhecimentos dos xamõi e xejaryi são muito preciosos, pois eles são os verdadeiros detentores de nossa “filosofia”. Nós valorizamos e lutamos para que o Teko Porã seja a base estrutural do nosso caminhar. Sem nós mulheres e nossa luta, nosso tekoa não se levanta, e todo o povo do mundo sofre as consequências quando somos maltratadas e desrespeitadas juntos com a nossa mãe terra.
Por isso, precisamos de mais espaços como o que foi criado neste encontro, no qual as xejaryi puderam fazer ecoar sua sabedoria, as jovens puderam escutá-las, e mulheres de todas as idades falaram, aconselharam, ouviram, partilharam experiências de luta e resistência e se apoiaram. Sabemos que nenhuma de nós está sozinha e queremos que esta nossa voz, que não é de apenas uma, mas de muitas mulheres guarani, alcance os espaços de fazer política, de luta, de cotidiano e de afeto. Saímos deste Nhemboaty mais fortes e conscientes de que ele marca o começo de uma longa caminhada que fazemos e continuaremos a fazer juntas: a luta é urgente e para agora, é pelas mulheres que vivem hoje, mas é também pelas que estão por vir.

Viva o Povo Guarani! Demarcação Já!

 

 


Comentários

  1. Viva o Povo Guarani! Demarcação Já!

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  2. É por aí, povos queridos. Ninguém solta a mão de ninguém. Os resultados se multiplicam regional, nacional e internacionalmente. Agora em Agosto é a vez do fortalecimento dos Povos Originários Guarani na TI Morro dos Cavalos em Palhoça/SC, nossos vizinhos, na preparação do Acampamento Terra Livre de abril 2024, em Brasília/DF.

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