Duas Lições de São Luís Orione

Conheci a história e obras de são João Luís Orione em 1961, com 12 anos de idade, em Siderópolis, região de colonização italiana do sul de Santa Catarina.

Tive a graça de levá-lo como meus temas às academias internacionais de mestrado e doutorado na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma em 1986 e 1996, respectivamente.

A área foi de Missiologia que versa sobre evangelização e culturas que a igreja católica tem nesta faculdade desde 1622, há 392 anos.

Da residência ao lado do Coliseu, fui transferido para vivenciar e trabalhar com a cultura local na paróquia de Ognissanti (Todos os Santos), oferecida a Dom Orione pelo papa Pio X, em 25 de março de 1908.
Na ocasião, o papa lhe disse que ao seu pedido de trabalhar na América do Sul oferecia o convite para evangelizar naquela “Patagônia Romana”, em referência às terras geladas do sul da Argentina.

Tenho duas lições aprendidas com este santo atípico nas minhas buscas como padre brasileiro nas duas vezes em que fui estudar em Roma.

A primeira lição foi tirar a limpo o seu protagonismo como defensor da cidadania do povo negro na igreja do Brasil após a abolição da escravatura em 1888 e a separação igreja/estado em 1891, dois anos após a Proclamação da República.

Pude, então, ver e analisar os manuscritos das cartas trocadas pelo santo durante 27 anos com Silvério Gomes Pimenta, o único arcebispo negro da história do Brasil colonial e republicano porque afilhado de crisma do servo de Deus, o bispo Dom Viçoso em Mariana (MG) que lhe empregara como porteiro do seminário para custear os estudos.

Silvério tornou-se famoso como participante da Academia Brasileira de Letras e como secretário do I Concílio Latino-americano em Roma em 1899. “Niger, sed sapiens! (Negro, porém, sábio!)” diziam discriminadamente sobre o arcebispo negro.

Em 1921, o santo finalmente vem ao Brasil e à Argentina, após ter enviado missionários desde dezembro de 1914, há 101 anos.

Com Silvério, ele inaugura no Brasil o primeiro seminário e noviciado para vocações de homens e mulheres negras em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Por essa causa, Luís Orione sofre vexames, constragimentos e perseguições inclusive por autoridades da própria igreja.

Descrevi em detalhes na dissertação como o santo consegue remover a discriminação legalizada pelo governo lusitano nas Constituições de 1707.

Com método sábio, mais do que por palavras, agiu eticamente contra aquelas leis injustas e anti-evangélicas naturalizadas para justificar a escravidão.

Dentre os frutos dessa ousadia ética, está a ordenação do primeiro grupo de afro-descendentes em 19 de março de 1963 em Roma. Dia de São José. Adivinhem onde foi? Isso mesmo, bem ali na Patagônia Romana. No dia seguinte, o grupo foi recebido pelo papa São João XXIII.

Um deles, o Pe. José do Nascimento F. da Silva, 79, há mais de 30 anos trabalhando em SC lembra nos 51 anos daquela primeira missa que “foi um momento histórico para a Congregação, porque foi o primeiro grupo de padres negros. Isto estava nos planos de São Luís Orione e que seus religiosos levaram adiante, às vezes sem mesmo o perceber”.

De fato, Dom Orione quando apresentou ao arcebispo de Mariana D. Silvério Gomes Pimenta o projeto da criação de duas famílias religiosas para negros e indígenas fez com o bispo negro uma novena a São José em favor do sonho.

E animou o sonho de muitos garotos negros como o menino Nascimento: “Minha madrinha era inspetora do Colégio D. Bosco, perto de Congonhas do Campo. Ela me encaminhou para lá durante as férias. Fiquei quatro dias esperando uma resposta definitiva. Aí ela me disse: ‘Vamos procurar outro semináro’. Então alguém informou que em São Julião estava funcionando um seminário de Dom Orione. Fomos para lá. Eles foram muito rápidos em me atender. Daquela época em diante houve abertura e não tive problemas devidos à cor. No seminário maior do Rio de Janeiro, também já havia uma mentalidade aberta, era um seminário para muitas dioceses e a nossa presença negra foi bem aceita”.

A segunda lição do santo foi a sua luta pelo direito das pessoas com deficiência viverem sua vocação religiosa e sacerdotal na igreja. Uma luta ética travada contra a discriminação jurídica no Direito Canônico vigente que impedia às pessoas cegas, corcundas, sem mãos, etc de serem sacerdotes, monjas e religiosas.

No próprio Vaticano, conseguiu juntar mulheres cegas para inaugurar uma comunidade de freiras contemplativas. Uma atividade dele e do papa mantida em segredo por longo tempo até se tornar costume mostrar a inadequação daquela lei canônica.

Essa bandeira de reconhecimento de direitos às pessoas com deficiência foi fortalecida por São Luís Orione na Itália e também na vizinha Argentina onde foi exilado por três anos.

Em Claypole, fundou uma grande vila que até hoje é a menina dos olhos dos argentinos. No Brasil, seus devotos tem hasteado a mesma bandeira de luta pelo cuidado com as pessoas com deficiência em estado de abandono e de outros abandonados, em uma centena de obras no Brasil e na África.

Tive a graça de animar um grande mutirão para construir a Orionópolis Catarinense. Esse nome passou a homenagear sua memória nas obras brasileiras. É uma extensão do que fez quando em sua humildade apelidava as suas obras de Pequeno Cotolengo como homenagem a São José Benedito Cotolengo cuja obra em Turim, na Itália, chega a 8 mil leitos.

O seu nome nas obras, levam assim a nossa sociedade a hastear as mesmas bandeiras de sensibilidade com a vida de todos. Eu só pude aprofundar esse aspecto dez anos depois, na tese de doutoramento sob o título de Dom Orione Evangelizador.

Hoje, no céu e numa incontável roda de seguidores, nosso santo peregrina com seu sangue, certamente festejando conforme escreveu um dia: “Hoje tenho uma vontade louca de dançar. Haverá dança no Paraíso? Se existe música haverá dança também; quero cantar e dançar sempre. De repente o Senhor me arranjará um cantinho particular para não perturbar os mais contemplativos. Eu quero manter a alegria em todos, cantar e dançar sempre, quero ser o santo das danças, dos cantos, da alegria em Deus”.

Na festa de 51 anos do primeiro grupo de padres afro-brasileiros, no mínimo está havendo um “santo batuque no céu!”

Quanto aprendi e partilhei naquele quartiere romano típico com pessoas de todas as idades e ideologias: jovens universitários e não, cristãos com carteirinha do Partido Comunista obrigados à confissão a cada vez que quisesssem comungar, ex-simpatizantes das Brigadas Vermelhas até à grande presença de idosos próximos ao centenário que diariamente faziam do templo, seu espaço de espiritualidade e aconchego.
Agora no bairro virtual do Facebook continuamos a trocar energias de fraternidade no grupo que formamos sob o nome de L’oceano non conta (O oceano não nos separa), desde 1986.

Em PDF organizado pela gráfica Agnus, ofereço esse estudo de mestrado sob o título São Luís Orione – o santo defensor do povo negro e de outros excluídos no Brasil. Já está disponível também no youtube o vídeo de 12 min sobre o mesmo tema remix de 20 anos atrás.

É homenagem ao seu sangue que passa em reliquário nas comunidades para renovar em nossas veias o sangue do amor, justiça e solidariedade com humanos e com a natureza.

Valores nos quais o santo dá lições de sobra para nossa pós-modernidade virtual carente do virtuoso.

Professor Jaci Rocha Gonçalves

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